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Experiência de Agnes Sedlmayr

Frequentemente somos questionados por amigos, conhecidos, familiares, professores sobre determinadas questões que se prendem com o nosso modo de vida e parecem incompreensíveis aos olhos de quem não conhece.

Uma das questões mais comuns que nos fazem é sobre a aprendizagem.

 

"Mas como é que vocês sabem se, e o quê os vossos meninos aprendem? Como conseguem controlar o quê e quanto eles sabem?" perguntam-nos.

Não controlamos, mas observamos. Como só temos dois e não vinte e cinco meninos, e como estamos conectados por amor e confiança, podemos observar diariamente as maravilhas do cérebro humano em evolução permanente, do espírito livre em expansão e do amor e da alegria que os meninos irradiam.

Como exemplo para a aprendizagem natural que procede de forma tão diferente dos currículos escolares, compartimentados e externos à motivação de cada criança, costumo descrever alguns passos no desenvolvimento cognitivo do Timo.

Com três anos, o Timo tinha um interesse louco por tratores. Vivemos numa aldeia com muitos agricultores e, em breve, ele conhecia todos os tratores da vizinhança e era amigo de todos os tratoristas que o deixavam sentar-se ao volante e mexer nos botões. Descobriu que os tratores tinham nomes (as marcas), e rapidamente sabia as marcas todas, reconhecendo um determinado trator pelo som do motor, mesmo sem o ver! Um dia numa loja encontrou um livro sobre tratores, com fotografias e descrição da marca, do modelo, da potência, etc. Era um livro para adultos, mas ele insistiu que precisava dele. Comprei-o. Tornou-se o livro preferido, aquele que o Timo observava diariamente. Pedia para lhe lermos os nomes dos tratores e todas as informações que mesmo para nós adultos, não nos diziam nada. De repente apercebemo-nos que ele sabia ler! Tinha aprendido a ler sozinho a partir do livro de tratores! Estava tão extremamente interessado nos tratores que sentiu necessidade de aprender a ler para poder descobrir tudo o que estava descrito naquele livro! Ainda não tinha 4 anos.

Poucos meses mais tarde, viu imagens do TITANIC na revista National Geographic. Despertou-lhe o interesse. Leu, viu e pesquisou tudo quanto conseguiu sobre o navio, e começou-se a interessar por navios em geral. Partiu para a descoberta dos primeiros barcos, sobre as embarcações dos egiptos e dos fenícios, passando pela aprendizagem dos diferentes tipos de barcos à vela. O seu interesse ficou preso aos barcos à vela da época dos Descobrimentos.

Com o nosso apoio, pesquisou tudo sobre as caravelas e as naus, analisou diferentes tipos de construção de caravelas, visitou barcos verdadeiros e museus, aprendeu pormenores técnicos incríveis e apaixonou-se em particular pelo Santa Maria de Cristóvão Colombo.

A partir daí, virou-se para a história dos Descobrimentos, tendo estado fascinado meses a fio com Cristóvão Colombo e Vasco da Gama. Estudou à sua própria maneira a rota das Índias, a descoberta da América, a escola do Infante D. Henrique em Sagres. Aprofundou os seus conhecimentos sobre a época dos Descobrimentos durante muitos meses, diariamente. Viu DVDs, leu imensos livros, leu a biografia de Cristóvão Colombo, analisou as rotas nos mapas, tomou conhecimento do latim e do português antigo, interessou-se pela música medieval e renascentista. Paralelamente, vibrou com as cantigas de amigo de Afonso o Sábio, e aprendeu a tocar flauta para saber tocar as cantigas de amigo suas favoritas.

Quando se sentiu saciado, partiu à descoberta do mundo submarino. Começou por interessar-se por baleias e golfinhos, depois peixes e plantas marinhas no geral, e apaixonou-se por calamares, lulas e polvos! Mais uma vez, estudou à sua própria maneira e ao seu próprio ritmo meses a fio sobre polvos. Ajudámos a encontrar livros relacionados com o tema nas bibliotecas e nas lojas, ele viu programas da BBC e National Geographic e escreveu, desenhou, moldou em barro e plasticina, visitou o Oceanário de Lisboa e estudou todos os assuntos relacionados com estes animais. Paralelamente aprofundou o conhecimento das características de muitos outros animais que o interessavam, em particular o Nautilus e os Caranguejos. Apanhou caranguejos na praia, analisou-os, tentou criá-los mas infelizmente morreram. Leu, construiu, modelou, pintou caranguejos. Ele próprio era um caranguejo nas brincadeiras com o irmão e amigos...

Isto são apenas alguns exemplos da profunda aprendizagem que acontece naturalmente, neste caso entre os 3 e os 6 anos, se a motivação é intrínseca, se a criança tem a possibilidade de explorar aquilo que a fascina, que a faz vibrar. O Timo nunca irá esquecer nada do que aprendeu, porque foi de uma profundidade e intensidade que ele próprio escolheu.

O que descrevi ocupava uma grande parte do seu dia, mas simultaneamente havia sempre tempo para brincar, explorar a natureza, estar com amigos, tocar flauta, participar na confeção de alimentos, aprender a nadar, a fazer contas de somar e subtrair, a aprender inglês para comunicar com os amigos ingleses, a viajar para o país da avó, a acampar, brincar imenso, aprender a jogar xadrez, fazer truques de magia com um mágico amigo, saltar no trampolim, ir a concertos, dormir, ler histórias, pintar, fazer malha, trabalhar no jardim, com barro e com plasticina...

Penso que é visível como toda a aprendizagem está inserida naturalmente no ritmo diário e nos interesses que vão surgindo. Para aprender tudo o que lhe interessa, o Timo não precisa de estar sentado 7 horas por dia num espaço dedicado exclusivamente à "aprendizagem", num convívio forçado com outras 25 crianças que não têm nada em comum a não ser a idade. Não precisa de se submeter à humilhação de pedir para ir à casa de banho, de ter de esperar para comer mesmo que tenha fome ou, pior, de ser avaliado, corrigido e analisado a cada passo. Vive intensamente, seguindo os seus interesses a seu próprio ritmo, em alegria e união com quem ama e em quem confia.

 

Outra das questões que muitos colocam relativamente ao unschooling, é a questão da socialização.

 

A grande maioria das pessoas aceita acriticamente a crença de que apenas numa sala de aula ou num intervalo de vinte minutos num recreio de betão que se realiza a socialização. Nós questionamos isso.

Os nossos filhos têm contacto com pessoas de todas as idades. Observam o oleiro e conversam com ele enquanto veem como ele faz vasos e jarras e lhes oferece barro para modelar. Visitam o moleiro e conversam com ele sobre o seu trabalho, ajudando a pesar a farinha na balança verdadeira. Trocam ideias com o agricultor ao lado que os deixa andar no seu trator e lhes oferece regularmente frutos e legumes da sua horta. Brincam com os vizinhos e os amigos de várias nacionalidades, comunicando frequentemente em português, alemão e inglês, não para passar o teste de inglês mas porque precisam de falar inglês com os amigos. Convivem com adultos e crianças de todas as idades, diariamente. Vivem o quotidiano com a sua família, aprendendo valores como a tolerância, a entreajuda, a partilha, o respeito e a empatia através do exemplo dos adultos com quem partilham a sua vida.

Ninguém exige que partilhem à força algum brinquedo quando ainda não têm maturidade para compreender o sentido da partilha. Ninguém exige que digam obrigada e desculpa, sinais de respeito que apenas fazem sentido se são de livre vontade, resultantes de maturidade emocional. Ninguém exige que passem tempo com pessoas que não gostam. Tal como para nós, adultos, é extremamente desconfortável e rouba-nos energia e vitalidade ter de passar tempo com pessoas que não gostamos, acontece o mesmo com crianças.

Apoiamos os contactos das crianças com pessoas que as estimulam, inspiram e as respeitam, da mesma forma que aceitamos as suas decisões de se protegerem de pessoas destrutivas, intromissoras ou abusivas.

Como pude observar inúmeras vezes, crianças livres têm vontade de conversar com pessoas de todas as idades e não hesitam em dirigir-se a adultos, ao contrário das crianças educadas em instituições que frequentemente apenas falam entre si e têm receio em conversar com adultos.

Crianças livres têm amizades intensas baseadas em interesses comuns e não em questões como a mesma idade e a mesma turma.

 

Outra das questões que me é colocada frequentemente é se as crianças não estariam a ser protegidas das dificuldades do mundo real, de modo que no futuro não consigam enfrentar esse mundo?

 

Penso que as crianças nas escolas são afastadas do mundo real. Estão limitadas a uma situação altamente artificial num espaço dirigido e preparado para a inculcação de informação académica. Estão privadas da imensa variedade de pessoas, situações, experiências e acontecimentos do mundo real. Para além disso, estão emocionalmente mais carentes e vulneráveis e por isso facilmente desequilibrados perante situações adversas.

Crianças livres não vivem uma vida cor-de-rosa. Enfrentam a vida real, apercebem-se do mundo porque estão imersas nele. Passam por dificuldades tal como qualquer ser humano, mas têm uma bagagem de apoio, amor e autoestima, para além de terem a possibilidade de criar soluções individuais para resistir ao stress e encontrar formas únicas de resolver problemas.

Crianças livres não passam pelas dificuldades de chumbar nos testes, de ter de decorar assuntos que não lhes interessam minimamente, de se sujeitar a humilhação e uniformização, de ter de seguir instruções sem questionar, de ter de obedecer e reprimir a sua opinião. Porém, é altamente duvidoso se estas situações, características da educação institucional, serão benéficas para o desenvolvimento íntegro e feliz do ser humano. E não é, de todo, o que nós desejamos para o presente e o futuro dos nossos filhos.

As dificuldades que as crianças livres enfrentam não são criadas artificialmente, mas fazem parte da vida e das diferentes fases de desenvolvimento em que cada um se encontra. Ninguém avalia como e através de que estratégias essas dificuldades são ou não ultrapassadas, ninguém corrige a maneira de encarar estas dificuldades ou apressa a resolução de problemas. Apenas apoiamos quando somos solicitados. De resto, estamos presentes, respeitamos, amamos e observamos.

 

Mas como é que estas crianças aprendem a ser disciplinadas? Persistentes? Organizadas?Perguntam tantas pessoas, habituadas a ver valores tal como veem o conhecimento: como algo a ser imposto a partir de uma instância externa.

 

Nós acreditamos que os valores se desenvolvem de dentro para fora, que não podem ser impostos. Uma consciência ética, moral e cívica apenas pode desenvolver-se a partir de exemplos a seguir e de acordo com a maturação emocional e intelectual individual. Por mais que se tente impor determinados valores nas escolas, não passam de obrigações a cumprir e a evitar assim que possível, quando não resultam duma verdadeira maturidade.

Na vida com as crianças livres, não insistimos em que persistam apenas para poder dizer que são persistentes. Quando as crianças querem atingir algum objetivo que para elas é importante, são persistentes e disciplinadas sem serem obrigadas a isso ou manipuladas por alguém. São persistentes porque querem, porque veem sentido no esforço que fazem para atingir um determinado fim que consideram importante. Não sofrem para agradar ou receber algum elogio, nem porque temem a crítica caso desistam. Esforçam-se conforme a importância que dão a determinado fim, e desistem quando consideram adequado. Aprendem, assim, a gerir as suas capacidades e a alcançar a seu próprio ritmo as suas metas.

As crianças livres são organizadas quando compreendem o valor da organização. Não são obrigadas a arrumar o seu quarto, forçadas e manipuladas a limpar e a arrumar sem que percebam a razão para isso. Através da coerção, uma criança aprende que a arrumação é desagradável, que é uma tarefa no mínimo chata e no máximo, completamente dispensável. Que é algo imposto pela autoridade dos pais ou professores, que ninguém gosta mas tem de fazer. Uma criança livre, no entanto, quando está matura para isso sente que é mais agradável estar num espaço limpo, trabalhar num ambiente arrumado, encontrar os seus objetos com facilidade, manter os utensílios em bom estado. Sente isso e participa com alegria na manutenção e arrumação, não por ser obrigada mas por serem tarefas que fazem parte da vida e são úteis para todos.

Só quando a criança compreende isto é que os valores da organização e limpeza foram assimilados verdadeiramente e serão aplicados sempre quando achar necessário, de livre vontade.

 

Quais são, então, as dificuldades concretas no vosso quotidiano? Perguntam-me em consequência à minha resposta anterior.

A capacidade financeira reduzida, consequência do facto de só uma pessoa trabalhar a tempo inteiro, é uma situação desagradável mas aceitável.

O que acho realmente complicado prende -se com as minhas próprias limitações emocionais.

Fomos educados para reprimir as nossas emoções, para disfarçar os nossos intensos e verdadeiros sentimentos, em prol de um comportamento quieto e adaptado. Crescendo desta forma, estamos habituados a ignorar os nossos impulsos emocionais e a valorizar uma atitude objetiva e calculista. Porém, para proteger e apoiar um desenvolvimento emocional saudável é importante admitir as emoções, aceitar os impulsos, possibilitar a experiência de toda a imensa variedade de sentimentos e sensações. Aprender a reconhecer e gerir as nossas emoções, para as trabalhar em vez de reprimir.

É, no entanto, complicado assistir a explosões de emoções intensas por parte dos nossos filhos quando nós próprios nunca tivemos o direito de explodir assim. É complicado aceitar a fúria, o choro estridente, os berros, o desespero, a tristeza, a alegria ruidosa, a brincadeira empolgada e barulhenta, a recusa e todos os mais aspetos que caracterizam a exteriorização de sentimentos de um ser ainda imaturo.

É dificílimo resistir à tentação de acabar depressa com o comportamento inquietante, através de "Não chores!", "Já passou!" "Cala-te!", "Não aconteceu nada!" ou outras frases típicas que desvalorizam o sentimento da criança e exigem final abrupto e repressão dos sentimentos.

É importantíssimo recordar diariamente que é saudável e reconfortante poder libertar as emoções junto de quem nos ama incondicionalmente, para passar em seguida à próxima fase. Não podendo fazê-lo, tantas mas tantas crianças aprendem cedo a calar, disfarçar vulnerabilidades, para mais tarde se confrontarem com doenças emocionais e psicossomáticas derivadas de tantos anos de sentimentos reprimidos.

Crianças livres têm a possibilidade de viver ao seu próprio ritmo e explorar o mundo de acordo com a sua personalidade única e exclusiva. Dado que passam a grande parte do seu quotidiano com a família, criam-se laços intensos entre irmãos, que servem de base e aprendizagem para todos os relacionamentos futuros. Ao contrário da maioria dos irmãos que estão separados todo o dia e apenas esporadicamente brincam, conversam e fazem atividades juntos, as crianças livres experimentam uma profunda união e um relacionamento complexo com os seus irmãos, que lhes serve como base para aprender e aplicar comportamentos e valores como a partilha, a comunicação sincera, a entreajuda, a solução de problemas e a empatia.

 

Uma nova perspetiva nos relacionamentos

Uma vez comprometidos com a realização de uma vida livre baseada no respeito pela individualidade e a tolerância perante o ritmo e os interesses de cada um, o processo não pára nas crianças.

É apenas natural construir e reconstruir os nossos relacionamentos com as outras pessoas que partilham a nossa vida a partir de uma atitude livre de controlo, manipulação, imposição ou avaliação.

Os valores de liberdade emocional e desenvolvimento individual tornam- se um modo de vida. Em consequência, tratamos o nosso parceiro ou os nossos amigos com a mesma tolerância como os nossos filhos. Respeitamos os interesses e as opções do nosso parceiro, apoiando-o no desenvolvimento máximo do seu potencial. Não julgamos e condenamos o nosso parceiro ou os nossos amigos, mas contribuímos para nutrir e satisfazer as suas necessidades emocionais. Não nos julgamos no direito de controlar o que o nosso parceiro diz, faz ou escolhe, nem no direito de exigir que altere partes da sua personalidade de acordo com os nossos desejos.

Quando ambos os parceiros se comprometem a estes valores, o relacionamento adquire uma profundidade fora do comum, possibilitando conexão e, simultaneamente, libertação. Os parceiros e amigos fortalecem-se mutuamente e apoiam um crescimento individual baseado em liberdade e respeito, o que acaba por enriquecer não só cada um, mas toda a família e comunidade.

Estou convicta de que uma sociedade mais pacífica, justa, equilibrada e sustentável só se consegue, se mudarmos a nossa perspetiva sobre a infância. Temos de parar de perpetuar uma educação que insiste no controlo, na repressão de emoções, na competição e no sacrifício da felicidade atual em prol de um eventual sucesso material futuro.

Julgo importante reconhecer que a máxima realização pessoal possível é ser feliz, tanto na infância como na idade adulta; que a felicidade se baseia num sentimento intenso de estar bem, consigo próprio e com os que nos rodeiam, de nos sentirmos aceites e amados pelo que somos e de podermos viver íntegros, seguindo as nossas paixões e os nossos interesses.

Deixemos para trás as amarras da pedagogia e distorção às quais fomos submetidos, aceitemos as nossas vulnerabilidades, mostremos compaixão e empatia pelo processo individual e único de cada um, honremos e protejamos a diversidade, sejamos livres para amar profundamente e demonstrá-lo!

 

Este texto foi extraido do último capítulo do livro de Agnes Sedlmayr "Livre para Crescer" on-line e livre para dowload

 

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